Da
janela do avião, a anunciação do que estava por vir gritava pelo tapete
verde-escuro quase ininterrupto formado por arvores centenárias de copas
infinitas. A rede orgânica era intervalada apenas por uma sucuri aquática majestosamente
curvilínea: o Rio Pará, que foi trançado seu espaço por meio da floresta ao
longo de milhares de anos. O aroma herbáceo e o calor úmido me invadiram tão
logo pisei para fora do avião. Era fato: minha bússola de pesquisadora havia me
tirado dos pampas para me aventurar na Amazônia, a minha última fronteira do
sabor.
Nas ruas de Belém, as alamedas formadas por antigas mangueiras continuavam a colorir a cidade em tons esverdeados. A monotonia do verde era quebrada por casas amarelas, azuis, vermelhas e pelo colorido das fitinhas da lembrança do Círio amarradas nas imediações da Igreja de Nossa de Nazaré em busca do alcance de graças .
Nas ruas de Belém, as alamedas formadas por antigas mangueiras continuavam a colorir a cidade em tons esverdeados. A monotonia do verde era quebrada por casas amarelas, azuis, vermelhas e pelo colorido das fitinhas da lembrança do Círio amarradas nas imediações da Igreja de Nossa de Nazaré em busca do alcance de graças .
Chegando no hotel, percebi que o calor não era só na temperatura, mas
também no trato às pessoas: no simpático hotel-pousada familiar Marajoara, os
donos me acolheram como filha.
Era quase 17h quando fui dar meus primeiros passos pelas cidade e a movimentação das tacacazeiras para iniciar seus trabalhos era quase ritual. Os banquinhos dispostos na frente da Kombi já esperavam os clientes que já viravam a esquina. - “Há que se ter uma confiança danada naquela que faz o tucupi...”, disse-me um cliente que esperava na fila. -“...se não for bem feito, o suco da mandioca brava pode ser letal”.
Era quase 17h quando fui dar meus primeiros passos pelas cidade e a movimentação das tacacazeiras para iniciar seus trabalhos era quase ritual. Os banquinhos dispostos na frente da Kombi já esperavam os clientes que já viravam a esquina. - “Há que se ter uma confiança danada naquela que faz o tucupi...”, disse-me um cliente que esperava na fila. -“...se não for bem feito, o suco da mandioca brava pode ser letal”.
A julgar pela fila e pela fama do Tacacá da Dona Maria, a
confiança era de sobra. Quando tirei os óculos e pedi meu tacacá, a filha de
Dona Maria, que assumiu o carrinho após a morte de sua mãe, me disse: “com
esses olhos você não deve ser daqui. E se não é daqui deve saber o que é e nem
como se come tacacá”. Mal sabia ela que, apesar de gaúcha, me criei em Brasília
e muitos dos meus domingos foram regados a tacacá na Feira da Torre (até
contrabando para de tucupi para o RS eu já fiz). Mas a deixei falar. Falar do
seu ofício familiar. Falar da sua vida. Falar do sangue amarelo que corre nas
veias dos paraenses desde seus tempos mais remotos.
“Primeiro ele era feito pelos índios. Plantavam a roça da mandioca brava e depois colhiam. A brava é aquela amarela, sabe? Depois eles ralavam e colocavam no tipiti. Esticavam, extraiam seu suco e deixavam descansar até a goma descer e o líquido amarelo ficar brilhoso. Deixavam o líquido fermentar. Depois tinha que ferver, pra evaporar o veneno. É um ácido na verdade. Cianídrico. Mas não mata também, esse povo é exagerado! Aí foi passando. De geração em geração. Aprendi com a minha mãe. Agora a gente não faz mais com tipiti. Só rala e espreme no pano. Para fazer o tacacá é só temperar o tucipi: a gente coloca alho, chicória paraense, pimenta de cheiro e alfavaca. O jambu e o camarão seco a gente coloca na hora. O jambu é que faz tremer! E tem que tomar quente, fazer suar para mandar embora as coisas ruins do corpo”.
“Primeiro ele era feito pelos índios. Plantavam a roça da mandioca brava e depois colhiam. A brava é aquela amarela, sabe? Depois eles ralavam e colocavam no tipiti. Esticavam, extraiam seu suco e deixavam descansar até a goma descer e o líquido amarelo ficar brilhoso. Deixavam o líquido fermentar. Depois tinha que ferver, pra evaporar o veneno. É um ácido na verdade. Cianídrico. Mas não mata também, esse povo é exagerado! Aí foi passando. De geração em geração. Aprendi com a minha mãe. Agora a gente não faz mais com tipiti. Só rala e espreme no pano. Para fazer o tacacá é só temperar o tucipi: a gente coloca alho, chicória paraense, pimenta de cheiro e alfavaca. O jambu e o camarão seco a gente coloca na hora. O jambu é que faz tremer! E tem que tomar quente, fazer suar para mandar embora as coisas ruins do corpo”.
Enquanto
ela me explicava, foi preparando meu Tacacá: cesta de palha, cuia, três conchas
cheias, um punhado generoso de camarão seco e o jambu.
- “Quer goma?”
- “Claro, a experiência tem que ser completa!” E lá se foi uma colherada do viscoso e transparente amido.
-
“Tá. Agora senta aqui e deixa eu tirar uma foto! Tem que mostrar pros seus amigos
lá debaixo que se toma direto da cuia.”
No
primeiro gole eu me dei conta: aquele era meu verdadeiramente primeiro tacacá! Porque
o que faz o tacacá não é só tucupi misturado com seus temperos, mas o saber, as
gerações, o afeto, o trabalho, a memória e a cultura que transformam aquele alimento numa
entidade essencial, como a matriarca de uma família, para identidade de seu
povo.
Depois
do último camarão, um abraço naquela querida e mais alguns passos de volta ao
hotel sombreados pelas mangueiras...